sexta-feira, 7 de março de 2008

Cultos, com Ternura

Descobrí isto, essa história mais as pequenas telas, na gaveta onde dormem desde há mais de sete anos. Tenho de as partilhar, é uma jóia genuína.

Tinha chegado a uma pequena aldeia de nome
Boroas (nome fictício), situado algures no Alentejo, anichado num vale escarpado e húmido, quando todo o resto à volta crepitava de calor.
Existe, claro, uma igreja junto a um tanque caiado de água pública, a fazer rossio em paralelepípedo bruto, ainda mais afundado no vale fresco que o resto da aldeia. Estranho eu, por a igreja ter ar de majestade, mas deslocada. Embora simples, de azul e branco caiado e granitos pouco elaboradas, impõe-se firme e orgulhosa com alpendre aterraçado a encimar o pórtico, e duas escadas laterais a conduzir para o mesmo.
Senti-me atraído para este sítio, e sim, perante as portas todas cerradas, fui à tasca, à mercearia, desterrar alguém nessa hora tórrida e dormente que pudesse abrir a igreja. Uma jovem que se prestou, mais o pai dela, saídos de uma casa por cima do tanque, guiaram-me então e iam contando pelo caminho.
Lugar de culto peculiar, este, foi erigido na primeira metade do século XVIII por cima de um poço ainda existente, em adoração a Nª Sª de ...(...pois), milagrosa aparição essa, testemunhada por um pastor de cuja mão-cheia de vacas uma se teria despenhado por uma ravina, tendo nessa queda partido uma das suas quatro patas, e sofrendo ao fundo da escarpa e com a língua de fora em agonia - como muito bem se pode, ainda hoje, observar no fiel relato pintado sobre tela na igreja. Não havendo ainda milagre, o pastor em aflição se teria precipitado em busca de socorro à próxima 'Aldeia das Oliveiras' ( nome fictício) (a aldeia de 'Boroas', está visto, iria ainda nascer a volta de uma futura igreja, erigida no local de um futuro milagre), para aí juntar um grupo de homens afim de salvar a vaca de sua calamitosa situação. Porém, chegado ao local do desastre, o piquete de socorro teria encontrado a vaca calmamente ruminado o farto pasto, e com quatro patas incólumes a sustentar o tronco, a cabeça, e o rabo. Milagre evidente (agora sim), logo se dedicaram à obra da igreja nesse lugar, e foi um santeiro incumbido de esculpir uma Nossa Senhora, delicada, em marfim e a caber na palma da mão de um homem - obra essa que vi com os meus olhos e que me comoveu sinceramente pela beleza. Faz notar a jovem que a Santa retratada se distingue de todas as outras Santas por ter apenas uma das mãos. Olhando com atenção a preciosa imagem situada num nicho lateral à capela-mor, a dois metros e meio de altura e na penumbra, reparo de facto na falta da dita, da esquerda. Não posso, claro, deixar de inquirir sobre a razão dessa omissão, respondendo-me ela que assim foi feito porque, claro então, a Santa tinha dado uma mãozinha à vaca moribunda, não?
Sendo essa imagem da Santa tão humilde e pequena, incumbiu-se mais recentemente a outro santeiro de fazer uma nova, maior e de colorido esplendoroso, exposta devidamente na capela-mor, e que representa tão só a Santa como também o pastor em adoração e a vaca sucumbida a dor ( mas que mais se parece com um burro a coçar as costas no chão).
Não quero certamente faltar ao respeito das crenças e da sua vivência em convicção, mas custa-me presenciar a chocante falta de bom gosto e do saber fazer.
Tentando ignorar a imagem adorada, fico a saber que a história não acaba aqui. Como ficou patente, o milagre não foi testemunhado nem pelo pastor, nem pelos homens da aldeia. Uma fatalidade para qualquer milagre que se preze. Daí, e assim reza a história dos acontecimentos, contado agora pelo pai da jovem, os homens da aldeia mais o pastor, deparando com a vaca alegremente a pastar sem dar sinais de queda, de patas partidas, ou dores sofridas, e não havendo outra explicação senão a do milagre, ter- se- iam sentido na obrigação de achar testemunho desse mesmo. Teriam eles deparado - em local e hora oportuna - com um lagarto de descomunal dimensão (e o pai estende o braço, prolongando o ombro nu, para o lado, e enfia o dedo indicador da outra mão no sovaco exposto, para demonstrar o tamanho do bicho), que logo aí teria sofrido o sacrifício, e o posterior embalsamento, para ser exposto com referência na própria igreja, logo que concluída. Claro que, depois de ouvir este relato, fiquei curiosíssimo de ver a relíquia e inquiri sobre o seu paradeiro porque, nem nas penumbras mais escuras, nem na sacristia que cobre o poço, tinha reparado em nada que se parecesse com o tal bicho. Mas tenho pouca sorte, diz-me o homem, é que sabe, o lagarto foi muito cobiçado ao longo desses séculos. Apercebo-me pelo relato que se tornou hábito das noivas, ao saírem depois da cerimónia, surripiarem um pedacinho do abençoado testemunho do milagre para dar felicidade ao casamento, de modo que nos tempos recentes, a felicidade já só se fez representar pelas sobras ressequídas de um rabo escamoso. Chegado a esse estado pouco digno, a relíquia terá sido, poucos meses antes da minha visita, relegada para lugar incerto.
Consta ainda que a Santa tem o seu culto levado para o Brasil, onde a comunidade dos gaúchos lhe presta homenagem.
Deambulei ainda pelo vale atrás da igreja, vi a escarpa onde se terá passado o evento, passeei pelo ribeiro acima, e sim, acho que milagres acontecem.


1 comentário:

Anónimo disse...

não te sabia escritor talentoso, muito menos contador de histórias a preceito.
foi bom descobrir mais uma faceta bonita, vou ficar á espera de mais histórias!
beijossssss
P.