quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Augúrio

... e sabes que mais? O gajo vive mesmo através das sombras do real. Desfocado, claro está, e plano, e cinzento. Tem a luz sempre pelas costas. Certo dia, lá por aquilo que ele chama dia, apanhou um espelho pela frente e não o compreendeu. Achava que... com' é que explico...enfim, deduziu lá na lógica dele que a imagem seria certamente uma projecção de dimensões superiores. Não se reconheceu sequer à primeira, foi preciso ir pela sua silhueta, pela postura do corpo, por tudo que conhecia da sua sombra, pela maneira de se mexer, por uma madeixa de cabelo destacada no topo do crânio ... só por esse tipo de indícios na silhueta da habitual sombra é que se convenceu. Vê lá, chegou ao ponto de, por ter descoberto um conteúdo colorido e de formas discretas na silhueta, achar que estava a ver o seu interior, alma e espírito incluído. Baralhou-se, ficou pior ainda do que já estava antes. Era mesmo só olhos, nunca sentiu nada - nem com corpo, nem por alma, nem no espírito - digo eu. Só pode, sei lá. A última coisa que ouví - através dum fulano que lhe dá explicações sobre a teoria do Origami - é que, alegadamente, consegue ver os decaimentos aleatórios de fotões e electrões e dessas coisas na sua própria retina, mas só depois de violentos espirros.
Olha, está uma tarde tão boa, vai um Gin-Tonic lá fora?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Inspirançado

Uma manhã em contraluz, como há muitas agora, felizmente, admiravelmente. Ainda se ouve a brisa fresca na folhagem, galhos estalam baixinho sob os passos, a areia crepita. As vozes dos pássaros, claras, por aí...

domingo, 27 de janeiro de 2008

mysty lx
























Nesse dia, talvez num Domingo também,
a cidade acordou assim,
um pouco ressacada.
Difusa e sonolenta, aconchegava-se nos lençóis de névoa,
virava-se para mais um sonito no fundo do vale.
Sonhava com grandezas, encantada, e sapos por beijar.


Adornos

O desespero lá é grande.
Sinto saudades das roupas ao vento, aqui.

Coming home

Ele até estava contente chegar a casa. Ainda chamava assim ao lugar de onde veio, embora que já vivia longe há mais de metade da sua vida. Teria de ir mais uma vez a arrecadação na cave do prédio, como em todas as visitas, para seleccionar restos da sua existência e dar-lhes um destino permanente. Mais uma vez, seria um encontro penoso. Ao longo dos anos já tinha há muito descartado tudo de pessoal, restavam apenas algumas obras, pinturas dos primeiros anos. Enquanto no caminho do aeroporto, revia cada uma a sua frente e sentia o nó por baixo do esterno porque sabia que também desta vez não conseguiria cortar o cordão.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

ao lado do tangível












Tu és o meu leitor desconhecido, não anónimo, a quem declaro o meu anseio momentâneo, ou constante, a quem dirijo aquele sonho nebuloso que me persegue não sei porquê, que raio, que tenho tudo já, sonho incluido. Quase quero que fiques aí, enrolada na quietude, sem eu saber sequer se lês ou vês, quem és, se te rís ou te enfades, ou se durmas e as palavras pintadas passem ao lado do teu próprio sonho.. Não és espelho meu espelho meu..., mas és o meu vácuo que não é o mesmo que o Nada, vácuo de imaginado e fervilhante potencial, ou singularidade gravítica que tudo suga, nada devolve, mas onde nada se perde. És o meu tiro no escuro, o meu risco da tolice, a minha liberdade do ridículo, a minha ocasional ilusão de ser génio. O meu an-agente auto-regulador, porque as regras, em Ti, são só minhas, a disciplina minha, e a responsabilidade minha. Ai! Já sei! Pois claro, serias a bolsa onde jogo.
És o meu refúgio onde deposito os meus poderes latentes, seguros e resguardados da minha vida. Depósito a prazo no meu universo paralelo, bolsa lateral onde se guarda tesouros inomináveis e sementes de plantas exóticas incógnitas.